Por: Renato Faccini
01/07/2010

De vez em quando alguém me pergunta sobre o uso do lápis azul que sempre aparece em desenhos publicados nos livros sobre animações e nos blogs de artistas. Eu nem imaginava o quanto essa dúvida era corriqueira, e imaginava menos ainda que poderia render uma resposta interessante.
Para algumas pessoas a razão era apenas estética: deixar o desenho mais estiloso, com sensação de despreocupadamente profissional. A ideia não está totalmente errada, mas tem mais coisa aí.

James Jean
Começando por uma razão mais prática então: o lápis azul não suja tanto o papel quanto o grafite tradicional, e um esboço em azul é visto com mais clareza. Se usado em conjunto com outra cor (vermelho, por exemplo), ele dá uma ótima sobreposição, sendo possível entender as diferentes camadas de traço na hora da arte-final. Se tivermos um estudo onde cada elemento foi feito separadamente em azul, vermelho, grafite e nanquim, podemos entender com muito mais precisão cada pedaço do desenho. Assim ele pode ser muito mais facilmente vetorizado, pintado ou arte-finalizado a nanquim.
Quando falo em pintura ou arte-final, vale tanto pro processo tradicional quanto para o digital.

Joshua Middetown
Originalmente o lápis azul tinha uma outra razão primária nos quadrinhos e na animação. Um azul em especial, chamado de non-photo blue (“azul não fotográfico”, ou “não fotografável” ou ainda “não reproduzível” – mas vamos manter o nome em inglês) não era reproduzido pelos equipamentos antigos. Um artista poderia desenhar uma página em azul e fazer a arte-final a nanquim. Quando essa página era reproduzida pelas fotocopiadoras, as linhas azuis desapareciam. Atualmente os scanners captam (mal, mas conseguem) esses azuis, mas os traços que ficam podem ser facilmente separados do preto nos softwares gráficos. Sendo assim, sua função original permanece basicamente a mesma.
Exatamente como acontece com qualquer outro lápis, existem muitos tipos diferentes de lápis azuis e suas tonalidades e nomes variam de acordo com o fabricante. Os non-photo blue são identificados comercialmente por esse nome mesmo, mas podem ser difíceis de se encontrar no Brasil. Nesse caso, aqui vai uma análise rápida de alguns modelos fáceis de se achar. Acontece que o pigmento influencia no comportamento do grafite colorido. Isso quer dizer que na mesma caixa de lápis, o azul pode ter dureza diferente do vermelho. Mostramos eles aqui da maneira que saem em um scanner caseiro comum com configuração básica, sem alterações. Os aquareláveis tendem a ser mais pastosos na consistência.
Então, por exemplo:

Estes são mais duros:
Faber-Castell Polychromos Middle Phthalo Blue
Austria Marino Light Blue
Lyra Rembrandt-Polycolor Sky Blue
Austria Arnabelli Mountain Blue
Estes são mais pastosos:
Faber-Castell Albrecht Dürer Dark Phthalo Blue
Faber-Castell Polychromos Middle Azure Blue
Caran D’Ache Supracolor soft
Caran D’Ache Pablo bleu paste
O Pilot Color Eno Soft Blue 0.7 tem um tom azul esverdeado que aparentemente se aproxima muito do non-photo blue e tem a praticidade de ser um grafite para lapiseira.
Agora mais uma razão que talvez seja uma das mais legais, mas é de caráter pessoal do artista: o lápis azul cria texturas e volumes diferentes do grafite e trabalha muito bem em conjunto. Não torna o seu desenho colorido demais e ao mesmo tempo ressalta as qualidades do grafite. O desenho adquire uma plasticidade diferente e muito agradável.
Resumindo, fica bonito.

Dave Malan
Agora, como escolher? Como funciona isso na prática?
Se você quer usar o lápis azul pelas características artísticas mencionadas, apenas escolha um azul qualquer da sua preferência.
Se você faz questão absoluta que ele saia apagado em seus scans, procure importar o Non-Photo.
Se você quer um pouco de cada e não se importa em ter que trabalhar um pouco no Photoshop para apagar algumas linhas, use um grafite ou lápis comuns que se aproximem do Non-photo, como o soft blue citado.


Barry Windsor-Smith
E vamos fechar com Barry-Windsor Smith, um incrível artista dos quadrinhos que é famoso pelo uso do lápis azul com grafite. Em seu livro de 1999, OPUS, há um trecho sobre o assunto. O gerente do estúdio de Barry-Windor respondeu uma dúvida enviada por e-mail justamente sobre a questão:
“Eu sempre me perguntei por que muitos dos desenhos do Sr. Windsor-Smith são feitos em lápis azul e grafite, e às vezes em lápis azul e nanquim. Eu vi que esses desenhos frequentemente parecem conter um “algo a mais” do que aqueles impressos apenas em preto e branco. É só imaginação? Isso é algo do qual BWS está consciente e faz de propósito?”
[e-mail original. Usado com permissão]
Caro Klaus,
Aqui é Alex Bialy, gerente do Windsor-Smith Studio. Obrigado pelo seu e-mail tão ponderado. Vou responder à pergunta o melhor que puder, talvez até mais do que você tenha pedido.
A original e mundana razão pela qual muitos dos desenhos de Barry são em lápis azul com grafite ou nanquim tem origem em seu trabalho nos quadrinhos. O processo de reprodução envolve fotografar a arte em nanquim para se fazer as chapas de impressão. O processo não “vê” certos nuances de azul, comumente conhecidos por essa razão, como “non-photo blue”. No início Barry usava o lápis azul como ferramenta de esboço apenas em seu trabalho de quadrinhos. Mas ele mais tarde desenvolveu um elo visceral entre os estágios de esboço e os posteriores estágios de refinamento com grafite ou nanquim, e começou a transpor isto para seus outros trabalhos também. Nessa época as linhas azuis de esboço eram frequentemente deixadas no trabalho como uma importante parte do conjunto artístico.
Quando eu vim trabalhar com Barry como assistente e arte-finalista, percebi, assim como você, que os originais intocados com o desenho em azul tinham um certo apelo que me fazia especular sobre a sua razão de ser. Minha experiência antes de trabalhar em quadrinhos foi com engenharia e química do estado sólido, particularmente os vários tipos de análise envolvendo ondas de luz, feixes de elétrons e raios-x. Comecei a me perguntar se diferentes comprimentos de onda refletidos pelos trabalhos de azul e preto de BWS eram resultado de algum tipo de interferência harmônica, similar à maneira com que duas ou mais notas musicais, quando tocadas junto, podem criar notas adicionais que na verdade não estão sendo tocadas. Imaginei que isso poderia contar para a vibração extra dos originais com o azul intocado. Também notei que, em um show de rock, por exemplo, áreas iluminadas por um comprimento de onda de luz azul mais curto apareciam mais claramente e visíveis em mais detalhes do que áreas iluminadas pelo luz vermelha, que tem comprimento de onda mais longo.
Outra coisa que eu pensei sobre o efeito do preto/azul é que isso tem a ver com a maneira com a qual o cérebro processa os estímulos visuais. Com ambas as versões azul e preta em uma página, talvez o cérebro as perceba independente tão bem quanto coletivamente, e isso regula uma “tensão” perceptiva de baixa frequência no cérebro entre as duas imagens, resultando no “algo a mais” ou o que quer que seja.
Aposto que você não esperava uma resposta tão longa para sua inocente pergunta, mas eu tenho que dizer que a contemplação de um fenômeno desse tipo é uma das coisas às quais você é direcionado quando está em um ambiente artístico (o que não significa que a engenharia não tenha seus atributos artísticos) e que fazem isso tudo muito mais interessante.
Sinceramente,
Alex Bialy – Windsor-Smith Studio”
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